Livros de Manuel Bandeira

Eu me amo porque se eu nao me amar quem vai me amar?

Sobre o Autor

Manuel Bandeira

Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho (Recife, 19 de abril de 1886 - Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1968). Poeta brasileiro do estado de Pernambuco, um dos nomes da poesia moderna brasileira.

Melhores Livros de Manuel Bandeira

Mais frases de Manuel Bandeira

Andorinha, andorinha lá fora esta cantando: -Passei o dia a-toa, a-toa. Andorinha minha canção é mais triste: -Passei a vida a-toa, a-toa.´´

Quero a delicia de poder sentir as coisas mais simples

Beijo pouco, falo menos ainda Mas invento palavras Que traduzem a ternuar mais funda E mais cotidiana Inventei, por exemplo, o verdo teadorar Intransitivo: Teadoro, Teodora

Tem mais presença em mim, o que me falta.

Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? — O que eu vejo é o beco

Meu Quintana, os teus cantares Não são, Quintana, cantares: São, Quintana, quintanares. Quinta-essência de cantares... Insólitos, singulares... Cantares? Não! Quintanares! Quer livres, quer regulares, Abrem sempre os teus cantares Como flor de quintanares. São cantigas sem esgares. Onde as lágrimas são mares De amor, os teus quintanares. São feitos esses cantares De um tudo-nada: ao falares, Luzem estrelas luares. São para dizer em bares Como em mansões seculares Quintana, os teus quintanares. Sim, em bares, onde os pares Se beijam sem que repares Que são casais exemplares. E quer no pudor dos lares. Quer no horror dos lupanares. Cheiram sempre os teus cantares Ao ar dos melhores ares, Pois são simples, invulgares. Quintana, os teus quintanares. Por isso peço não pares, Quintana, nos teus cantares... Perdão! digo quintanares.

Nú Quando estás vestida, Ninguém imagina Os mundos que escondes Sob as tuas roupas. (Assim, quando é dia, Não temos noção Dos astros que luzem No profundo céu. Mas a noite é nua, E, nua na noite, Palpitam teus mundos E os mundos da noite. Brilham teus joelhos, Brilha o teu umbigo, Brilha toda a tua Lira abdominal. Teus exíguos - Como na rijeza Do tronco robusto Dois frutos pequenos - Brilham.) Ah, teus seios! Teus duros mamilos! Teu dorso! Teus flancos! Ah, tuas espáduas! Se nua, teus olhos Ficam nus também: Teu olhar, mais longe, Mais lento, mais líquido. Então, dentro deles, Bóio, nado, salto Baixo num mergulho Perpendicular. Baixo até o mais fundo De teu ser, lá onde Me sorri tualma Nua, nua, nua...

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo Quero apenas contar-te a minha ternura Ah se em troca de tanta felicidade que me dás Eu te pudesse repor -Eu soubesse repor_ No coração despedaçado As mais puras alegrias de tua infância!

ARTE DE AMAR Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor. Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não noutra alma. Só em Deus - ou fora do mundo. As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

boda espiritual Tu não estas comigo em momentos escassos: No pensamento meu, amor, tu vives nua - Toda nua, pudica e bela, nos meus braços. O teu ombro no meu, ávido, se insinua. Pende a tua cabeça. Eu amacio-a... Afago-a... Ah, como a minha mão treme... Como ela é tua... Põe no teu rosto o gozo uma expressão de mágoa. O teu corpo crispado alucina. De escorço O vejo estremecer como uma sombra nágua. Gemes quase a chorar. Suplicas com esforço. E para amortecer teu ardente desejo Estendo longamente a mão pelo teu dorso... Tua boca sem voz implora em um arquejo. Eu te estreito cada vez mais, e espio absorto A maravilha astral dessa nudez sem pejo... E te amo como se ama um passarinho morto.

A Cópula Depois de lhe beijar meticulosamente o cu, que é uma pimenta, a boceta, que é um doce, o moço exibe à moça a bagagem que trouxe: culhões e membro, um membro enorme e turgescente. Ela toma-o na boca e morde-o. Incontinenti, Não pode ele conter-se, e, de um jacto, esporrou-se. Não desarmou porém. Antes, mais rijo, alteou-se E fodeu-a. Ela geme, ela peida, ela sente Que vai morrer: - Eu morro! Ai, não queres que eu morra?! Grita para o rapaz que aceso como um diabo, arde em cio e tesão na amorosa gangorra E titilando-a nos mamilos e no rabo (que depois irá ter sua ração de porra), lhe enfia cona adentro o mangalho até o cabo.

Estrela da Manhã Eu quero a estrela da manhã Onde está a estrela da manhã? Meus amigos meus inimigos Procurem a estrela da manhã Ela desapareceu ia nua Desapareceu com quem? Procurem por toda a parte Digam que sou um homem sem orgulho Um homem que aceita tudo Que me importa? Eu quero a estrela da manhã Três dias e três noites Fui assassino e suicida Ladrão, pulha, falsário Virgem mal-sexuada Atribuladora dos aflitos Girafa de duas cabeças Pecai por todos pecai com todos Pecai com os malandros Pecai com os sargentos Pecai com os fuzileiros navais Pecai de todas as maneiras Com os gregos e com os troianos Com o padre e com o sacristão Com o leproso de Pouso Alto Depois comigo Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas comerei terra [e direi coisas de uma ternura tão simples Que tu desfalecerás Procurem por toda parte Pura ou degradada até a última baixeza Eu quero a estrela da manhã

Arte de Amar Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor. Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não noutra alma. Só em Deus - ou fora do mundo. As almas são incomunicáveis. Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

Tempo Será: A Eternidade está longe (Menos longe que o estirão Que existe entre o meu desejo E a palma da minha mão). Um dia serei feliz? Sim, mas não há de ser já: A Eternidade está longe, Brinca de tempo-será.

O BICHO VI ONTEM um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem.

A Estrela Vi uma estrela tão alta, Vi uma estrela tão fria! Vi uma estrela luzindo Na minha vida vazia. Era uma estrela tão alta! Era uma estrela tão fria! Era uma estrela sozinha Luzindo no fim do dia. Por que da sua distância Para a minha companhia Não baixava aquela estrela? Por que tão alto luzia? E ouvi-a na sombra funda Responder que assim fazia Para dar uma esperança Mais triste ao fim do meu dia.

NEOLOGISMO -------------------------------------------------------------------------------- Beijo pouco, falo menos ainda. Mas invento palavras Que traduzem a ternura mais funda E mais cotidiana. Inventei, por exemplo, o verbo teadorar. Intransitivo: Teadoro, Teodora. Petrópolis 25/2/1947

Café com pão Café com pão Café com pão Virge maria que foi isso maquinista? Agora sim Café com pão Agora sim Voa, fumaça Corre, cerca Ai seu foguista Bota fogo Na fornalha Que eu presciso Muita força Muita força Muita força Oô... Menina bonita Do vestido verde Me dá tua boca Pra matá minha sede Oô... Vou mimbora Vou mimbora Não gosto daqui Nasci no sertão Sou de Ouricuri Oô... Vou depressa Vou correndo Vou na toda Que só levo Pouca gente Pouca gente Pouca gente...

A Estrela Vi uma estrela tão alta, Vi uma estrela tão fria! Vi uma estrela luzindo Na minha vida vazia. Era uma estrela tão alta! Era uma estrela tão fria! Era uma estrela sozinha Luzindo no fim do dia. Por que da sua distância Para a minha companhia Não baixava aquela estrela? Por que tão alto luzia? E ouvi-a na sombra funda Responder que assim fazia Para dar uma esperança Mais triste ao fim do meu dia.

SONETO INGLÊS No. 1 Quando a morte cerrar meus olhos duros - Duros de tantos vãos padecimentos, Que pensarão teus peitos imaturos Da minha dor de todos os momentos? Vejo-te agora alheia, e tão distante: Mais que distante - isenta. E bem prevejo, Desde já bem prevejo o exato instante Em que de outro será não teu desejo, Que o não terás, porém teu abandono, Tua nudez! Um dia hei de ir embora Adormecer no derradeiro sono. Um dia chorarás... Que importa? Chora. Então eu sentirei muito mais perto De mim feliz, teu coração incerto.

POÉTICA Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto espediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor. Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo. Abaixo os puristas. Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo. De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar agraves mulheres, etc. Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbados O lirismo difícil e pungente dos bêbados O lirismo dos clowns de Shakespeare. - Não quero saber do lirismo que não é libertação.

A Morte Absoluta Morrer. Morrer de corpo e de alma. Completamente. Morrer sem deixar o triste despojo da carne, A exangue máscara de cera, Cercada de flores, Que apodrecerão - felizes! - num dia, Banhada de lágrimas Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte. Morrer sem deixar porventura uma alma errante... A caminho do céu? Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu? Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra, A lembrança de uma sombra Em nenhum coração, em nenhum pensamento, Em nenhuma epiderme. Morrer tão completamente Que um dia ao lerem o teu nome num papel Perguntem: Quem foi?... Morrer mais completamente ainda, - Sem deixar sequer esse nome.

Mulheres Como as mulheres são lindas! Inútil pensar que é do vestido... E depois não há só as bonitas: Há também as simpáticas. E as feias, certas feias em cujos olhos vejo isto: Uma menininha que é batida e pisada e nunca sai da cozinha. Como deve ser bom gostar de uma feia! O meu amor porém não tem bondade alguma. É fraco! Fraco! Meu Deus, eu amo como as criancinhas... És linda como uma história da carochinha... E eu preciso de ti como precisava de mamãe e papai (No tempo em que pensava que os ladrões moravam no morro atrás de casa e tinham cara de pau)

Nas ondas da praia Nas ondas do mar Quero ser feliz Quero me afogar. Nas ondas da praia Quem vem me beijar? Quero a estrela-dalva Rainha do mar. Quero ser feliz Nas ondas do mar Quero esquecer tudo Quero descansar. (Estrela da Manhã)

Aceitar o castigo imerecido não por fraqueza, mas por altivez. no tormento mais fundo o teu gemido trocar num grito de ódio a que o fez. As delícias da carne e pensamento com que o instinto da espécie nos engana, sobpor ao generoso sentimento de uma afeição mais simplesmente humana. Não tremer de esperança e nem de espanto. Nada pedir nem desejar senão a coragem De ser um novo santo. sem fé num mundo além do mundo. E então morrer sem uma lágrima que a vida Não vale a pena e a dor de ser vivida.

Não quero amar, Não quero ser amado. Não quero combater, Não quero ser soldado. — Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples!

Duas vezes se morre: Primeiro na carne, depois no nome. Os nomes, embora mais resistentes do que a carne, rendem-se ao poder destruidor do tempo, como as lápides.

Meu Quintana, os teus cantares Não são, Quintana, cantares: São, Quintana, quintanares. Quinta-essência de cantares... Insólitos, singulares... Cantares? Não! Quintanares!

Irene no Céu Irene preta Irene boa Irene sempre de bom humor. Imagino Irene entrando no céu: - Licença, meu branco! E São Pedro bonachão: - Entra, Irene. Você não precisa pedir licença

O dia vem, e dia a dentro Continuo a possuir o segredo da grande da noite.

... É tocante e vive, e me fez agora refletir que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.

Vi uma estrela tão alta, Vi uma estrela tão fria! Vi uma estrela luzindo Na minha vida vazia.

A existência é uma aventura, de tal modo inconsequente.

Namorados O rapaz chegou-se para junto da moça e disse: -Antônia, ainda não me acostumei com o seu corpo, com sua cara. A moça olhou de lado e esperou. -Você não sabe quando a gente é criança e de repente vê uma lagarta listrada? A moça se lembrava: -A gente fica olhando... A meninice brincou de novo nos olhos dela. O rapaz prosseguiu com muita doçura: -Antônia, você parece uma lagarta listrada. A moça arregalou os olhos, fez exclamações. O rapaz concluiu: -Antônia, você é engraçada! Você parece louca.

Ser como o rio que deflui Silencioso dentro da noite. Não temer as trevas da noite. Se há estrelas nos céus, refleti-las. E se os céus se pejam de nuvens, Como o rio as nuvens são água, Refleti-las também sem mágoa Nas profundidades tranquilas.

Tu amarás outras mulheres E tu me esquecerás! É tão cruel, mas é a vida. E no entretanto Alguma coisa em ti pertence-me! Em mim alguma coisa és tu. O lado espiritual do nosso amor Nos marcou para sempre. Oh, vem em pensamento nos meus braços! Que eu te afeiçoe e acaricie... Não sei porque te falo assim de coisas que não são. Esta noite, de súbito, um aperto De coração tão vivo e lancinante Tive ao pensar numa separação! Não sei que tenho, tão ansiosa e sem motivo. Queria ver-te... estar ao pé de ti... Cruel volúpia e profunda ternura dilaceram-me! É como uma corrida, em minhas veias, De fúrias e de santas para a ponta dos meus dedos Que queriam tomar tua cabeça amada, Afagar tua fronte e teus cabelos, Prender-te a mim por que jamais tu me escapasses! Oh, quisera não ser tão voluptuosa! E todavia Quanta delícia ao nosso amor traz a volúpia! Mas faz sofrer... inquieta... Ah, com que poderei contentá-la jamais? Quisera calmá-la na música... Ouvir muito, ouvir muito... Sinto-me terna... e sou cruel e melancólica! Possui-me como sou na ampla noite pressaga! Sente o inefável! Guarda apenas a ventura Do meu desejo ardendo a sós Na treva imensa... Ah, se eu ouvisse a tua voz!

A CANÇÃO DAS LÁGRIMAS DE PIERROT I A sala em espelhos brilha Com lustres de dez mil velas. Miríades de rodelas Multicores - maravilha! - Torvelhinham no ar que alaga O cloretilo e se toma Daquele mesclado aroma De carnes e de bisnaga. E rodam mais que confete, Em farândolas quebradas, cabeças desassisadas Por Colombina ou Pierrete II Pierrot entra em salto súbito. Upa! Que força o levanta? E enquanto a turba se espanta, Ei-lo se roja em decúbito. A tez, antes melancólica, Brilha. A cara careteia. Canta. Toca. E com tal veia, com tanta paixão diabólica, Tanta, que se lhe ensangüentam Os dedos. Fibra por fibra, Toda a sua essência vibra Nas cordas que se arrebentam. III Seu alaúde de plátano Milagre é que não se quebre. E a sua fronte arde em febre, Ai dele! e os cuidados matam-no. Ai dele! e essa alegria, Aquelas canções, aquele Surto não é mais, ai dele! Do que uma imensa ironia. Fazendo à cantiga louca Dolorido contracanto, Por dentro borbulha o pranto Como outra voz de outra boca: IV - Negaste a pele macia À minha linda paixão E irás entregá-la um dia Aos feios vermes do chão... Fiz por ver se te podia Amolecer - e não pude! Em vão pela noite fria Devasto o meu alaúde... Minha paz, minha alegria, Minha coragem, roubaste-mas... E hoje a minhalma sombria É como um poço de lástimas... V Corre após a amada esquiva. Procura o precário ensejo De matar o seu desejo Numa carícia furtiva. E encontrando-o Colombina, Se lhe dá, lesta, . socapa, Em vez de beijo um tapa, O pobre rosto ilumina-se-lhe! Ele que estava de rastros, Pula, e tão alto se eleva, Como se fosse na treva Romper a esfera dos astros!...

MASCARADA Você me conhece? (Frase dos mascarados de antigamente) - Você me conhece? - Não conheço não. - Ah, como fui bela! Tive grandes olhos, que a paixão dos homens (estranha paixão!) Fazia maiores... Fazia infinitos. Diz: não me conheces? - Não conheço não. - Se eu falava, um mundo Irreal se abria à tua visão! Tu não me escutavas: Perdido ficavas Na noite sem fundo Do que eu te dizia... Era a minha fala Canto e persuasão... Pois não me conheces? - Não conheço não. - Choraste em meus braços - Não me lembro não. - Por mim quantas vezes O sono perdeste E ciúmes atrozes Te despedaçaram! Por mim quantas vezes Quase tu mataste, Quase te mataste, Quase te mataram! Agora me fitas E não me conheces? - Não conheço não. Conheço que a vida É sonho, ilusão. Conheço que a vida, A vida é traição.

TU QUE ME DESTE O TEU CUIDADO... Tu que me deste o teu carinho E que me deste o teu cuidado, Acolhe ao peito, como o ninho Acolhe ao pássaro cansado, O meu desejo incontentado. Há longos anos ele arqueja Em aflitiva escuridão. Sê compassiva e benfazeja. Dá-lhe o melhor que ele deseja: Teu grave e meigo coração. Sê compassiva. Se algum dia Te vier do pobre agravo e mágoa, Atende à sua dor sombria: Perdoa o mal que desvaria E traz os olhos rasos de água. Não te retires ofendida. Pensa que nesse grito vem O mal de toda a sua vida: Ternura inquieta e malferida Que, antes, não dei nunca a ninguém. E foi melhor nunca ter dado: Em te pungido algum espinho, Cinge-a ao teu peito angustiado. E sentirás o meu carinho. E setirás o meu cuidado.

RENÚNCIA Chora de manso e no íntimo... procura Tentar curtir sem queixa o mal que te crucia: O mundo é sem piedade e até riria Da tua inconsolável amargura. Só a dor enobrece e é grande e é pura. Aprende a amá-la que a amarás um dia. Então ela será tua alegria, E será ela só tua ventura... A vida é vã como a sombra que passa Sofre sereno e de alma sombranceira Sem um grito sequer tua desgraça. Encerra em ti tua tristeza inteira E pede humildemente a Deus que a faça Tua doce e constante companheira...

Unidade Minh’alma estava naquele instante Fora de mim longe muito longe Chegaste E desde logo foi Verão O Verão com as suas palmas os seus mormaços os seus ventos de sôfrega mocidade Debalde os teus afagos insinuavam quebranto e molície O instinto de penetração já despertado Era como uma seta de fogo Foi então que min’alma veio vindo Veio vindo de muito longe Veio vindo Para de súbito entrar-me violenta e sacudir-me todo No momento fugaz da unidade.

O que eu adoro em ti Não é a tua beleza A beleza é em nós que existe A beleza é um conceito E a beleza é triste Não é triste em si Mas pelo que há nela De fragilidade e incerteza O que eu adoro em ti Não é a tua inteligência Não é o teu espírito sutil Tão ágil e tão luminoso Ave solta no céu matinal da montanha Nem é a tua ciência Do coração dos homens e das coisas. O que eu adoro em ti Não é a tua graça musical Sucessiva e renovada a cada momento Graça aérea como teu próprio momento Graça que perturba e que satisfaz O que eu adoro em ti Não é a mãe que já perdi E nem meu pai O que eu adoro em tua natureza Não é o profundo instinto matinal Em teu flanco aberto como uma ferida Nem a tua pureza. Nem a tua impureza. O que adoro em ti lastima-me e consola-me: O que eu adoro em ti é a vida!

Não te retires ofendida. Pensa que nesse grito vem O mal de toda minha vida: Ternura inquieta e malferida Que, antes, não dei nunca a ninguém. E foi melhor nunca ter dado: Em te pungindo algum espinho Cinge-a ao teu seio angustiado. E sentirás o meu carinho

Teresa, se algum sujeito bancar o sentimental em cima de você E te jurar uma paixão do tamanho de um bonde Se ele chorar Se ele se ajoelhar Se ele se rasgar todo Não acredita não Teresa É lágrima de cinema É tapeação Mentira CAI FORA.

Pneumotórax Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Tosse, tosse, tosse. Mandou chamar o médico: - Diga trinta e três. - Trinta e três... trinta e três... trinta e três... - Respire. - O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. - Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Teresa A primeira vez que vi Teresa Achei que ela tinha pernas estúpidas Achei também que a cara parecia uma perna Quando vi Teresa de novo Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo (Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse) Da terceira vez não vi mais nada Os céus se misturaram com a terra E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.

Belo belo minha bela Tenho tudo que não quero Não tenho nada que quero Não quero óculos nem tosse Nem obrigação de voto Quero quero Quero a solidão dos píncaros A água da fonte escondida A rosa que floresceu Sobre a escarpa inacessível A luz da primeira estrela Piscando no lusco-fusco Quero quero Quero dar a volta ao mundo Só num navio de vela Quero rever Pernambuco Quero ver Bagdá e Cusco Quero quero Quero o moreno de Estela Quero a brancura de Elisa Quero a saliva de Bela Quero as sardas de Adalgisa Quero quero tanta coisa Belo belo Mas basta de lero-lero Vida noves fora zero.

Poética Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com o livro do [ponto expediente protocolo e [manifestações de apreço ao Sr. diretor Estou farto do lirismo que para e vai [averiguar no dicionário de cunho [vernáculo de um vocábulo Abaixo os puristas Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbados O lirismo difícil e pungente dos bêbados O lirismo dos clows de Shakespeare -Não quero mais saber do lirismo que [não é libertação.

Os Sapos Enfunando os papos, Saem da penumbra, Aos pulos, os sapos. A luz os deslumbra. Em ronco que aterra, Berra o sapo-boi: - Meu pai foi à guerra! - Não foi! - Foi! - Não foi!. O sapo-tanoeiro, Parnasiano aguado, Diz: - Meu cancioneiro É bem martelado. Vede como primo Em comer os hiatos! Que arte! E nunca rimo Os termos cognatos. O meu verso é bom Frumento sem joio. Faço rimas com Consoantes de apoio. Vai por cinquüenta anos Que lhes dei a norma: Reduzi sem danos A fôrmas a forma. Clame a saparia Em críticas céticas: Não há mais poesia, Mas há artes poéticas... Urra o sapo-boi: - Meu pai foi rei!- Foi! - Não foi! - Foi! - Não foi!. Brada em um assomo O sapo-tanoeiro: - A grande arte é como Lavor de joalheiro. Ou bem de estatuário. Tudo quanto é belo, Tudo quanto é vário, Canta no martelo. Outros, sapos-pipas (Um mal em si cabe), Falam pelas tripas, - Sei! - Não sabe! - Sabe!. Longe dessa grita, Lá onde mais densa A noite infinita Veste a sombra imensa; Lá, fugido ao mundo, Sem glória, sem fé, No perau profundo E solitário, é Que soluças tu, Transido de frio, Sapo-cururu Da beira do rio...

Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconseqüente Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que nunca tive E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-dágua Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar — Lá sou amigo do rei — Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada.

Vi uma estrela tão alta, Vi uma estrela tão fria! Vi uma estrela luzindo Na minha vida vazia.

A existência é uma aventura, de tal modo inconsequente.

Eu me amo porque se eu nao me amar quem vai me amar?