Livros de Augusto dos Anjos

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo! O amor na humanidade é uma mentira. É. E é por isto que na minha lira De amores fúteis poucas vezes falo.

Sobre o Autor

Augusto dos Anjos

Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (Paraíba, 20 de abril de 1884 - Leopoldina, Minas Gerais, 12 de novembro de 1914), poeta brasileiro.

Melhores Livros de Augusto dos Anjos

Mais frases de Augusto dos Anjos

A esperança não murcha, ela não cansa, também como ela não sucumbe a crença. Vão-se sonhos nas asas da descrença, voltam sonhos nas asas da esperança.

Ah! Dentro de toda a alma existe a prova de que a dor como um dardo se renova quando o prazer barbaramente a ataca...

Escarrar de um abismo noutro abismo, Mandando ao Céu o fumo de um cigarro, Há mais filosofia neste escarro Do que em toda a moral do cristianismo!

Para iludir a minha desgraça, estudo Intimamente sei que não me iludo!

Provo que a mais alta expressão da dor Consiste essencialmente na alegria...

O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja.

“Para onde fores, Pai, para onde fores, Irei também, trilhando as mesmas ruas... Tu, para amenizar as dores tuas, Eu, para amenizar as minhas dores!”.

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo! O amor na humanidade é uma mentira. É. E é por isto que na minha lira De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor, poeta, é como cana azeda, A toda boca que não prova engana.

Ambiciono que o idioma em que eu te falo Possam todas as línguas decliná-lo Possam todos os homens compreendê-lo.

Cansado de chorar pelas estradas. Exausto de pisar mágoas pisadas. Hoje eu carrego a cruz das minhas dores.

Psicologia de um vencido Eu, filho do carbono e do amoníaco, Monstro de escuridão e rutilância, Sofro, desde a epigênesis da infância, A influência má dos signos do zodíaco. Profundíssimamente hipocondríaco, Este ambiente me causa repugnância... Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia Que se escapa da boca de um cardíaco. Já o verme — este operário das ruínas — Que o sangue podre das carnificinas Come, e à vida em geral declara guerra, Anda a espreitar meus olhos para roê-los, E há-de deixar-me apenas os cabelos, Na frialdade inorgânica da terra!

SOLITÁRIO Como um fantasma que se refugia Na solidão da natureza morta, Por trás dos ermos túmulos, um dia, Eu fui refugiar-me à tua porta! Fazia frio e o frio que fazia Não era esse que a carne nos contorta... Cortava assim como em carniçaria O aço das facas incisivas corta! Mas tu não vieste ver minha Desgraça! E eu saí, como quem tudo repele, -- Velho caixão a carregar destroços -- Levando apenas na tumba carcaça O pergaminho singular da pele E o chocalho fatídico dos ossos!

VERSOS ÍNTIMOS Vês! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de tua última quimera. Somente a Ingratidão – esta pantera – Foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O Homem, que, nesta terra miserável, Mora entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera. Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga, Escarra nessa boca que te beija!

Soneto Ao meu primeiro filho nascido morto com 7 meses incompletos 2 fevereiro 1911. Agregado infeliz de sangue e cal, Fruto rubro de carne agonizante, Filho da grande força fecundante De minha brônzea trama neuronial Que poder embriológico fatal Destruiu, com a sinergia de um gigante, A tua morfogênese de infante, A minha morfogênese ancestral?! Porção de minha plásmica substância, Em que lugar irás passar a infância, Tragicamente anônimo, a feder?!... Ah! Possas tu dormir feto esquecido, Panteisticamente dissolvido Na noumenalidade do NÃO SER!

Agonia de um filósofo Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo... O Inconsciente me assombra e eu nêle tolo Com a eólica fúria do harmatã inquieto! Assisto agora à morte de um inseto!... Ah! todos os fenômenos do solo Parecem realizar de pólo a pólo O ideal de Anaximandro de Mileto! No hierático areópago heterogêneo Das idéas, percorro como um gênio Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!... Rasgo dos mundos o velário espesso; E em tudo, igual a Goethe, reconheço O império da substância universal!

Idealismo Falas de amor, e eu ouço tudo e calo O amor na Humanidade é uma mentira. E é por isto que na minha lira De amores fúteis poucas vezes falo. O amor! Quando virei por fim a amá-lo?! Quando, se o amor que a Humanidade inspira É o amor do sibarita e da hetaíra, De Messalina e de Sardanapalo? Pois é mister que, para o amor sagrado, O mundo fique imaterializado — Alavanca desviada do seu fulcro — E haja só amizade verdadeira Duma caveira para outra caveira, Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!

Poema negro A Santos Neto Para iludir minha desgraça, estudo. Intimamente sei que não me iludo. Para onde vou (o mundo inteiro o nota) Nos meus olhares fúnebres, carrego A indiferença estúpida de um cego E o ar indolente de um chinês idiota! A passagem dos séculos me assombra. Para onde irá correndo minha sombra Nesse cavalo de eletricidade?! Caminho, e a mim pergunto, na vertigem: — Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem? E parece-me um sonho a realidade. Em vão com o grito do meu peito impreco! Dos brados meus ouvindo apenas o eco, Eu torço os braços numa angústia douda E muita vez, à meia-noite, rio Sinistramente, vendo o verme frio Que há de comer a minha carne toda! É a Morte — esta carnívora assanhada — Serpente má de língua envenenada Que tudo que acha no caminho, come... — Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro, Sai para assassinar o mundo inteiro, E o mundo inteiro não lhe mata a fome! Nesta sombria análise das cousas, Corro. Arranco os cadáveres das lousas E as suas partes podres examino. . . Mas de repente, ouvindo um grande estrondo, Na podridão daquele embrulho hediondo Reconheço assombrado o meu Destino! Surpreendo-me, sozinho, numa cova. Então meu desvario se renova... Como que, abrindo todos os jazigos, A Morte, em trajos pretos e amarelos, Levanta contra mim grandes cutelos E as baionetas dos dragões antigos! E quando vi que aquilo vinha vindo Eu fui caindo como um sol caindo De declínio em declínio; e de declínio Em declínio, com a gula de uma fera, Quis ver o que era, e quando vi o que era, Vi que era pó, vi que era esterquilínio! Chegou a tua vez, oh! Natureza! Eu desafio agora essa grandeza, Perante a qual meus olhos se extasiam... Eu desafio, desta cova escura, No histerismo danado da tortura Todos os monstros que os teus peitos criam. Tu não és minha mãe, velha nefasta! Com o teu chicote frio de madrasta Tu me açoitaste vinte e duas vezes... Por tua causa apodreci nas cruzes, Em que pregas os filhos que produzes Durante os desgraçados nove meses! Semeadora terrível de defuntos, Contra a agressão dos teus contrastes juntos A besta, que em mim dorme, acorda em berros Acorda, e após gritar a última injúria, Chocalha os dentes com medonha fúria Como se fosse o atrito de dois ferros! Pois bem! Chegou minha hora de vingança. Tu mataste o meu tempo de criança E de segunda-feira até domingo, Amarrado no horror de tua rede, Deste-me fogo quando eu tinha sede... Deixa-te estar, canalha, que eu me vingo! Súbito outra visão negra me espanta! Estou em Roma. É Sexta-feira Santa. A treva invade o obscuro orbe terrestre. No Vaticano, em grupos prosternados, Com as longas fardas rubras, os soldados Guardam o corpo do Divino Mestre. Como as estalactites da caverna, Cai no silêncio da Cidade Eterna A água da chuva em largos fios grossos... De Jesus Cristo resta unicamente Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente Sente vontade de abraçar-lhe os ossos! Não há ninguém na estrada da Ripetta. Dentro da Igreja de São Pedro, quieta, As luzes funerais arquejam fracas... O vento entoa cânticos de morte. Roma estremece! Além, num rumor forte, Recomeça o barulho das matracas. A desagregação da minha idéia Aumenta. Como as chagas da morféa O medo, o desalento e o desconforto Paralisam-se os círculos motores. Na Eternidade, os ventos gemedores Estão dizendo que Jesus é morto! Não! Jesus não morreu! Vive na serra Da Borborema, no ar de minha terra, Na molécula e no átomo... Resume A espiritualidade da matéria E ele é que embala o corpo da miséria E faz da cloaca uma urna de perfume. Na agonia de tantos pesadelos Uma dor bruta puxa-me os cabelos, Desperto. É tão vazia a minha vida! No pensamento desconexo e falho Trago as cartas confusas de um baralho E um pedaço de cera derretida! Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme. Eu, somente eu, com a minha dor enorme Os olhos ensangüento na vigília! E observo, enquanto o horror me corta a fala, O aspecto sepulcral da austera sala E a impassibilidade da mobília. Meu coração, como um cristal, se quebre O termômetro negue minha febre, Torne-se gelo o sangue que me abrasa, E eu me converta na cegonha triste Que das ruínas duma casa assiste Ao desmoronamento de outra casa! Ao terminar este sentido poema Onde vazei a minha dor suprema Tenho os olhos em lágrimas imersos... Rola-me na cabeça o cérebro oco. Por ventura, meu Deus, estarei louco?! Daqui por diante não farei mais versos.

As cismas do destino I Recife. Ponte Buarque de Macedo. Eu, indo em direção à casa do Agra, Assombrado com a minha sombra magra, Pensava no Destino, e tinha medo! Na austera abóbada alta o fósforo alvo Das estrelas luzia... O calçamento Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento, Copiava a polidez de um crânio calvo. Lembro-me bem. A ponte era comprida, E a minha sombra enorme enchia a ponte, Como uma pele de rinoceronte Estendida por toda a minha vida! A noite fecundava o ovo dos vícios Animais. Do carvão da treva imensa Caía um ar danado de doença Sobre a cara geral dos edifícios! Tal uma horda feroz de cães famintos, Atravessando uma estação deserta, Uivava dentro do eu, com a boca aberta, A matilha espantada dos instintos! Era como se, na alma da cidade, Profundamente lúbrica e revolta, Mostrando as carnes, uma besta solta Soltasse o berro da animalidade. E aprofundando o raciocínio obscuro, Eu vi, então, à luz de áureos reflexos, O trabalho genésico dos sexos, Fazendo à noite os homens do Futuro. Livres de microscópios e escalpelos, Dançavam, parodiando saraus cínicos, Biliões de centrosomas apolínicos Na câmara promíscua do vitellus. Mas, a irritar-me os globos oculares, Apregoando e alardeando a cor nojenta, Fetos magros, ainda na placenta, Estendiam-me as mãos rudimentares! Mostravam-rne o apriorismo incognoscível Dessa fatalidade egualitária, Que fez minha família originária Do antro daquela fábrica terrível! A corrente atmosférica mais forte Zunia. E, na ígnea crostra do Cruzeiro, julgava eu ver o fúnebre candieiro Que há de me alumiar na hora da morte. Ninguém compreendia o meu soluço, Nem mesmo Deus! Da roupa pelas brechas, O vento bravo me atirava flechas E aplicações hiemais de gelo russo. A vingança dos mundos astronômicos Enviava à terra extraordinária faca, Posta em rija adesão de goma laca Sobre os meus elementos anatômicos. Ali! Com certeza, Deus me castigava! Por toda a parte, como um réu confesso, Havia um juiz que lia o meu processo E uma forca especial que me esperava! Mas o vento cessara por instantes Ou, pelo menos, o ignís sapiens do Orco Abafava-me o peito arqueado e porco Num núcleo de substâncias abrasantes. É bem possível que eu um dia cegue. No ardor desta letal tórrida zona, A cor do sangue é a cor que me impressiona E a que mais neste mundo me persegue! Essa obsessão cromática me abate. Não sei por que me vêm sempre à lembrança O estômago esfaqueado de uma creança E um pedaço de víscera escarlate. Quisera qualquer coisa provisória Que a minha cerebral caverna entrasse, E até ao fim, cortasse e recortasse A faculdade aziaga da memória. Na ascensão barométrica da calma, Eu bem sabia, ansiado e contrafeito, Que uma população doente do peito Tossia sem remédio na minhalma! E o cuspo que essa hereditária tosse Golfava, à guisa de ácido resíduo, Não era o cuspo só de um indivíduo Minado pela tísica precoce. Não! Não era o meu cuspo, com certeza Era a expectoração pútrida e crassa Dos brônquios pulmonares de uma taça Que, violou as leis da Natureza! Era antes uma tosse úbiqua, estranha, Igual ao ruído de um calhau redondo Arremessado no apogeu do estrondo, Pelos fundibulários da montanha! E a saliva daqueles infelizes Inchava, em minha boca, de tal arte, Que eu, para não cuspir por toda a parte, Ia engolindo, aos poucos, a hemoptisis! Na alta alucinação de minhas cismas O microcosmos líquido da gota Tinha a abundância de tinia artéria rota, Arrebentada pelos aneurismas. Chegou-me o estado máximo da mágoa! Duas, três, quatro, cinco, seis e sete Vezes que eu me furei com um canivete, A hemoglobina vinha cheia de água! Cuspo, cujas caudais meus beiços regam, Sob a forma de mínimas camândulas, Benditas sejam todas essas glândulas, Que, quotidianamente, te segregam! Escarrar de um abismo noutro abismo, Mandando ao Céu o fumo de um cigarro, Há mais filosofia neste escarro Do que em toda a moral do cristianismo! Porque, se no orbe oval que os meus pés tocam Eu não deixasse o meu cuspo carrasco, jamais exprimiria o acérrimo asco Que os canalhas do mundo me provocam! II Foi no horror dessa noite tão funérea Que eu descobri, maior talvez que Vinci, Com a força visualística do lince, A falta de unidade na matéria! Os esqueletos desarticulados, Livres do acre fedor das carnes mortas, Rodopiavam, com as brancas tíbias tortas, Numa dança de números quebrados! Todas as divindades malfazejas, Siva e Arimã, os duendes, o In e os trasgos, Imitando o barulho dos engasgos, Davam pancadas no adro das igrejas. Nessa hora de monólogos sublimes, A companhia dos ladrões da noite, Buscando uma taverna que os acoite, Vai pela escuridão pensando crimes. Perpetravam-se os actos mais funestos, E o luar, da cor de um doente de icterícia, Iluminava, a rir, sem pudicícia, A camisa vermelha dos incestos. Ninguém, de certo, estava ali, a espiar-me, Mas um lampeão, lembrava ante o meu rosto, Um sugestionador olho, ali posto De propósito, para hipnotizar-me! Em tudo, então, meus olhos distinguiram Da miniatura singular de uma aspa, A anatomia mínima da caspa, Embriões de mundos que não progrediram! Pois quem não vê aí, em qualquer rua, Com a fina nitidez de um claro jorro, Na paciência budista do cachorro A alma embrionária que não continua?! Ser cachorro! Ganir incompreendidos Verbos! Querer dizer-nos que não finge, E a palavra embrulhar-se no laringe, Escapando-se apenas em latidos! Despir a putrescível forma tosca, Na atra dissolução que tudo inverte, Deixar cair sobre a barriga inerte O apetite necrófago da mosca! A alma dos animais! Pego-a, distingo-a, Acho-a nesse interior duelo secreto Entre a ânsia de um vocábulo completo E uma expressão que não chegou à língua! Surpreendo-a em quatriliões de corpos vivos, Nos antiperistálticos abalos Que produzem nos bois e nos cavalos A contracção dos gritos instintivos! Tempo viria, em que, daquele horrendo Caos de corpos orgânicos disformes Rebentariam cérebros enormes Como bolhas febris de água, fervendo! Nessa época que os sábios não ensinam, A pedra dura, os montes argilosos Creariam feixes de cordões nervosos E o neuroplasma dos que raciocinam! Almas pigméas! Deus subjuga-as, cinge-as A imperfeição! Mas vem o Tempo, e vence-O, E o meu sonho crescia no silêncio, Maior que as epopéas carolíngias! Era a revolta trágica dos tipos Ontogênicos mais elementares, Desde os foraminíferos dos mares À grei liliputiana dos polipos. Todos os personagens da tragédia, Cansados de viver na paz de Buda, Pareciam pedir com a boca muda A ganglionária célula intermédia. A planta que a canícula ígnea torra, E as coisas inorgânicas mais nulas Apregoavam encéfalos, medulas Na alegria guerreira da desforra! Os protistas e o obscuro acervo rijo Dos espongiários e dos infusórios Recebiam com os seus órgãos sensórios O triunfo emocional do regozijo! E apesar de já ser assim tão tarde, Aquela humanidade parasita, Como um bicho inferior, berrava, aflita, No meu temperamento de covarde! Mas, reflectindo, a sós, sobre o meu caso, Vi que, igual a um amneota subterrâneo, jazia atravessada no meu crânio A intercessão fatídica do atraso! A hipótese genial do microzima Me estrangulava o pensamento guapo, E eu me encolhia todo como um sapo Que tem um peso incômodo por cima! Nas agonias do delíríum-tremens, Os bêbedos alvares que me olhavam, Com os copos cheios esterilizavam A substância prolífica dos semens! Enterram as mãos dentro das goelas, E sacudidos de um tremor indômito Expeliam, na dor forte do vômito, Um conjunto de gosmas amarelas. Iam depois dormir nos lupanares Onde, na glória da concupiscência, Depositavam quase sem consciência As derradeiras forças musculares. Fabricavam destarte os blastodermas, Em cujo repugnante receptáculo Minha perscrutação via o espectáculo De uma progênie idiota de palermas. Prostituição ou outro qualquer nome, Por tua causa, embora o homem te aceite, É que as mulheres ruins ficam sem leite E os meninos sem pai morrem de fome! Por que há de haver aqui tantos enterros? Lá no Engenho também, a morte é ingrata... Há o malvado carbúnculo que mata A sociedade infante dos bezerros! Quantas moças que o túmulo reclama! E após a podridão de tantas moças, Os porcos esponjando-se nas poças Da virgindade reduzida à lama! Morte, ponto final da última cena, Forma difusa da matéria imbele, Minha filosofia te repele, Meu raciocínio enorme te condena! Deante de ti, nas catedrais mais ricas, Rolam sem eficácia os amuletos, Oh! Senhora dos nossos esqueletos E das caveiras diárias que fabricas! E eu desejava ter, numa ânsia rara, Ao pensar nas pessoas que perdera, A inconsciência das máscaras de cera Que a gente prega, com um cordão, na cara! Era um sonho ladrão de submergir-me Na vida universal, e, em tudo imerso, Fazer da parte abstracta do Universo, Minha morada equilibrada e firme! Nisto, pior que o remorso do assassino, Reboou, tal qual, num fundo de caverna, Numa impressionadora voz interna, O eco particular do meu Destino: III Homem! por mais que a Idéa desintegres, Nessas perquisições que não têm pausa, jamais, magro homem, saberás a causa De todos os fenômenos alegres! Em vão, com a bronca enxada árdega, sondas A estéril terra, e a hialina lâmpada ôca, Trazes, por perscrutar (oh! ciência louca!) O conteúdo das lágrimas hediondas. Negro e sem fim é esse em que te mergulhas Lugar do Cosmos, onde a dor infrene É feita como é feito o querosene Nos recôncavos úmidos das hulhas! Porque, para que a Dor perscrutes, fora Mister que, não como és, em síntese, antes Fosses, a reflectir teus semelhantes, A própria humanidade sofredora! A universal complexidade é que Ela Compreende. E se, por vezes, se divide, Mesmo ainda assim, seu todo não reside No quociente isolado da parcela! Ah! Como o ar imortal a Dor não finda! Das papilas nervosas que há nos tactos Veio e vai desde os tempos mais transactos Para outros tempos que hão de vir ainda! Como o machucamento das insônias Te estraga, quando toda a estuada Idéa Dás ao sôfrego estudo da ninféa E de outras plantas dicotiledôneas! A diáfana água alvíssima e a hórrida áscua Que da ígnea flama bruta, estriada, espirra; A formação molecular da mirra, O cordeiro simbólico da Páscoa; As rebeladas cóleras que rugem No homem civilizado, e a ele se prendem Como às pulseiras que os mascates vendem A aderência teimosa da ferrugem, O orbe feraz que bastos tojos acres Produz; a rebelião que, na batalha, Deixa os homens deitados, sem mortalha. Na sangueira concreta dos massacres; Os sanguinolentíssimos chicotes Da hemorragia; as nódoas mais espessas, O achatamento ignóbil das cabeças, Que ainda degrada os povos hotentotes; O Amor e a Fome, a fera ultriz que o fojo Entra, à espera que a mansa vítima o entre, — Tudo que gera no materno ventre A causa fisiológica do nojo; As pálpebras inchadas na vigília, As aves moças que perderam a asa, O fogão apagado de uma casa, Onde morreu o chefe da família; O trem particular que um corpo arrasta Sinistramente pela via-férrea, A cristalização da massa térrea, O tecido da roupa que se gasta; A água arbitrária que hiulcos caules grossos Carrega e come; as negras formas feias Dos aracnídeos e das centopéias, O fogo-fátuo que ilumina os ossos; As projecções flamívomas que ofuscam, Como uma pincelada rembrandtesca, A sensação que uma coalhada fresca Transmite às mãos nervosas dos que a buscam; O antagonismo de Tifon e Osíris, O homem grande oprimindo o homem pequeno, A lua falsa de um parasseleno, A mentira mateórica do arco-íris; Os terremotos que, abalando os solos, Lembram paióis de pólvora explodindo, A rotação dos fluidos produzindo A depressão geológica dos pólos; O instinto de procrear, a ânsia legitima Da alma, afrontando ovante aziagos riscos, O juramento dos guerreiros priscos Metendo as mãos nas glândulas da vítima; As diferenciações que o psicoplasma Humano sofre na mania mística, A pesada opressão característica Dos 10 minutos de um acesso de asma; E, (conquanto contra isto ódios regougues) A utilidade fúnebre da corda Que arrasta a rês, depois que a rês engorda, A morte desgraçada dos açougues... Tudo isto que o terráqueo abismo encerra Forma a complicação desse barulho Travado entre o dragão do humano orgulho E as forças inorgânicas da terra! Por descobrir tudo isso, embalde cansas! Ignoto é o gérmen dessa força ativa Que engendra, em cada célula passiva, A heterogeneidade das mudanças! Poeta, feto malsão, criado com os sucos De um leite mau, carnívoro asqueroso, Gerado no atavismo monstruoso Da alma desordenada dos malucos; Última das criaturas inferiores Governada por átomos mesquinhos, Teu pé mata a uberdade dos caminhos E esteriliza os ventres geradores! O áspero mal que a tudo, em torno, trazes, Análogo é ao que, negro e a seu turno, Traz o ávido filóstomo noturno, Ao sangue dos mamíferos vorazes! Ah! Por mais que, com o espírito, trabalhes A perfeição dos seres existentes, Hás de mostrar a cárie dos teus dentes Na anatomia horrenda dos detalhes! O Espaço — esta abstração spencereana Que abrange as relações de coexistência E só! Não tem nenhuma dependência Com as vértebras mortais da espécie humana! As radiantes elipses que as estrelas Traçam, e ao espectador falsas se antolham São verdades de luz que os homens olham Sem poder, no entretanto, compreendê-las. Em vão, com a mão corrupta, outro éter pedes Que essa mão, de esqueléticas falanges, Dentro dessa água que com a vista abranges, Também prova o princípio de Arquimedes! A fadiga feroz que te esbordoa Há de deixar-te essa medonha marca, Que, nos corpos inchados de anasarca, Deixam os dedos de qualquer pessoa! Nem terás no trabalho que tiveste A misericordiosa toalha amiga, Que afaga os homens doentes de bexiga E enxuga, à noite, as pústulas da peste! Quando chegar depois a hora tranqüila, Tu serás arrastado, na carreira, Como um cepo inconsciente de madeira Na evolução orgânica da argila! Um dia comparado com um milênio Seja, pois, o teu último Evangelho... E a evolução do novo para o velho E do homogêneo para o heterogêneo! Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo A apodrecer!. .. És poeira, e embalde vibras! O corvo que comer as tuas fibras Há de achar nelas um sabor amargo! IV Calou-se a voz. A noite era funesta. E os queixos, a exibir trismos danados, Eu puxava os cabelos desgrenhados Como o rei Lear, no meio da floresta! Maldizia, com apóstrofes veementes, No stentor de mil línguas insurrectas, O convencionalismo das Pandectas E os textos maus dos códigos recentes! Minha imaginação atormentada Paria absurdos... Como diabos juntos, Perseguiam-me os olhos dos defuntos Com a carne da esclerótica esverdeada. Secara a clorofila das lavouras. Igual aos sostenidos de uma endeixa, Vinha me às cordas glóticas a queixa Das coletividades sofredoras. O mundo resignava-se invertido Nas forças principais do seu trabalho... A gravidade era um princípio falho, A análise espectral tinha mentido! O Estado, a Associação, os Municípios Eram mortos. De todo aquele mundo Restava um mecanismo moribundo E uma teleologia sem princípios. Eu queria correr, ir para o inferno, Para que, da psiquê no oculto jogo, Morressem sufocadas pelo fogo Tôdas as impressões do mundo externo! Mas a Terra negava-me o equilíbrio... Na Natureza, uma mulher de luto Cantava, espiando as árvores sem fruto, A canção prostituta do ludíbrio!

O morcego Meia noite. Ao meu quarto me recolho. Meu Deus! E este morcego! E, agora, vêde: Na bruta ardência orgânica da sede, Morde-me a goela ígneo e escaldante molho. Vou mandar levantar outra parede... — Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho E olho o tecto. E vejo-o ainda, igual a um olho, Circularmente sobre a minha rede! Pego de um pau. Esforços faço. Chego A tocá-lo. Minhalma se concentra. Que ventre produziu tão feio parto?! A Consciência Humana é este morcego! Por mais que a gente faça, à noite, ele entra Imperceptivelmente em nosso quarto!

O meu nirvana No alheamento da obscura forma humana, De que, pensando, me desencarcero, Foi que eu, num grito de emoção, sincero Encontrei, afinal, o meu Nirvana! Nessa manumissão schopenhauereana, Onde a Vida do humano aspecto fero Se desarraiga, eu, feito força, impero Na imanência da Idéa Soberana! Destruída a sensação que oriunda fora Do tacto — ínfima antena aferidora Destas tegumentárias mãos plebéas — Gozo o prazer, que os anos não carcomem, De haver trocado a minha forma de homem Pela imortalidade das Idéas!

SONETO Canta teu riso esplêndido sonata, E há, no teu riso de anjos encantados, Como que um doce tilintar de prata E a vibração de mil cristais quebrados. Bendito o riso assim que se desata - Citara suave dos apaixonados, Sonorizando os sonhos já passados, Cantando sempre em trínula volata! Aurora ideal dos dias meus risonhos, Quando, úmido de beijos em ressábios Teu riso esponta, despertando sonhos... Ah! Num delíquio de ventura louca, Vai-se minhalma toda nos teus beijos, Ri-se o meu coração na tua boca!

ECOS DALMA Oh! madrugada de ilusões, santíssima, Sombra perdida lá do meu Passado, Vinde entornar a clâmide puríssima Da luz que fulge no ideal sagrado! Longe das tristes noites tumulares Quem me dera viver entre quimeras, Por entre o resplendor das Primaveras Oh! madrugada azul dos meus sonhares. Mas quando vibrar a última balada Da tarde e se calar a passarada Na bruma sepulcral que o céu embaça Quem me dera morrer então risonho Fitando a nebulosa do meu sonho E a Via-Látea da Ilusão que passa!

A ESPERANÇA A Esperança não murcha, ela não cansa, Também como ela não sucumbe a Crença. Vão-se sonhos nas asas da Descrença, Voltam sonhos nas asas da Esperança. Muita gente infeliz assim não pensa; No entanto o mundo é uma ilusão completa, E não é a Esperança por sentença Este laço que ao mundo nos manieta? Mocidade, portanto, ergue o teu grito, Sirva-te a Crença de fanal bendito, Salve-te a glória no futuro - avança! E eu, que vivo atrelado ao desalento, Também espero o fim do meu tormento, Na voz da Morte a me bradar; descansa!

A IDÉIA De onde ela vem?! De que matéria bruta Vem essa luz que sobre as nebulosas Cai de incógnitas criptas misteriosas Como as estalactites duma gruta?! Vem da psicogenética e alta luta Do feixe de moléculas nervosas, Que, em desintegrações maravilhosas, Delibera, e depois, quer e executa! Vem do encéfalo absconso que a constringe, Chega em seguida às cordas do laringe, Tísica, tênue, mínima, raquítica ... Quebra a força centrípeta que a amarra, Mas, de repente, e quase morta, esbarra No mulambo da língua paralítica.

Acostuma-te à lama que te espera! o homem, que, nesta terra miserável, mora, entra feras, sente inevitável necessidade de também ser fera.

Para iludir minha desgraça, estudo. Intimamente sei que não me iludo. Para onde vou (o mundo inteiro o nota) Nos meus olhares fúnebres, carrego A indiferença estúpida de um cego E o ar indolente de um chinês idiota! A passagem dos séculos me assombra. Para onde irá correndo minha sombra Nesse cavalo de eletricidade?! Caminho, e a mim pergunto, na vertigem: — Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem? E parece-me um sonho a realidade. Em vão com o grito do meu peito impreco! Dos brados meus ouvindo apenas o eco, Eu torço os braços numa angústia douda E muita vez, à meia-noite, rio Sinistramente, vendo o verme frio Que há de comer a minha carne toda! É a Morte — esta carnívora assanhada — Serpente má de língua envenenada Que tudo que acha no caminho, come... — Faminta e atra mulher que, a 1 de janeiro, Sai para assassinar o mundo inteiro, E o mundo inteiro não lhe mata a fome! Nesta sombria análise das cousas, Corro. Arranco os cadáveres das lousas E as suas partes podres examino. . . Mas de repente, ouvindo um grande estrondo, Na podridão daquele embrulho hediondo Reconheço assombrado o meu Destino! Surpreendo-me, sozinho, numa cova. Então meu desvario se renova... Como que, abrindo todos os jazigos, A Morte, em trajos pretos e amarelos, Levanta contra mim grandes cutelos E as baionetas dos dragões antigos! E quando vi que aquilo vinha vindo Eu fui caindo como um sol caindo De declínio em declínio; e de declínio Em declínio, com a gula de uma fera, Quis ver o que era, e quando vi o que era, Vi que era pó, vi que era esterquilínio! Chegou a tua vez, oh! Natureza! Eu desafio agora essa grandeza, Perante a qual meus olhos se extasiam... Eu desafio, desta cova escura, No histerismo danado da tortura Todos os monstros que os teus peitos criam. Tu não és minha mãe, velha nefasta! Com o teu chicote frio de madrasta Tu me açoitaste vinte e duas vezes... Por tua causa apodreci nas cruzes, Em que pregas os filhos que produzes Durante os desgraçados nove meses! Semeadora terrível de defuntos, Contra a agressão dos teus contrastes juntos A besta, que em mim dorme, acorda em berros Acorda, e após gritar a última injúria, Chocalha os dentes com medonha fúria Como se fosse o atrito de dois ferros! Pois bem! Chegou minha hora de vingança. Tu mataste o meu tempo de criança E de segunda-feira até domingo, Amarrado no horror de tua rede, Deste-me fogo quando eu tinha sede... Deixa-te estar, canalha, que eu me vingo! Súbito outra visão negra me espanta! Estou em Roma. É Sexta-feira Santa. A treva invade o obscuro orbe terrestre. No Vaticano, em grupos prosternados, Com as longas fardas rubras, os soldados Guardam o corpo do Divino Mestre. Como as estalactites da caverna, Cai no silêncio da Cidade Eterna A água da chuva em largos fios grossos... De Jesus Cristo resta unicamente Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente Sente vontade de abraçar-lhe os ossos! Não há ninguém na estrada da Ripetta. Dentro da Igreja de São Pedro, quieta, As luzes funerais arquejam fracas... O vento entoa cânticos de morte. Roma estremece! Além, num rumor forte, Recomeça o barulho das matracas. A desagregação da minha idéia Aumenta. Como as chagas da morféa O medo, o desalento e o desconforto Paralisam-se os círculos motores. Na Eternidade, os ventos gemedores Estão dizendo que Jesus é morto! Não! Jesus não morreu! Vive na serra Da Borborema, no ar de minha terra, Na molécula e no átomo... Resume A espiritualidade da matéria E ele é que embala o corpo da miséria E faz da cloaca uma urna de perfume. Na agonia de tantos pesadelos Uma dor bruta puxa-me os cabelos, Desperto. É tão vazia a minha vida! No pensamento desconexo e falho Trago as cartas confusas de um baralho E um pedaço de cera derretida! Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme. Eu, somente eu, com a minha dor enorme Os olhos ensangüento na vigília! E observo, enquanto o horror me corta a fala, O aspecto sepulcral da austera sala E a impassibilidade da mobília. Meu coração, como um cristal, se quebre O termômetro negue minha febre, Torne-se gelo o sangue que me abrasa, E eu me converta na cegonha triste Que das ruínas duma casa assiste Ao desmoronamento de outra casa! Ao terminar este sentido poema Onde vazei a minha dor suprema Tenho os olhos em lágrimas imersos... Rola-me na cabeça o cérebro oco. Por ventura, meu Deus, estarei louco?! Daqui por diante não farei mais versos.