Livros de Adélia Prado

Sobre o Autor

Adélia Prado

Escritora, professora pro formação, revitalizou a literatura inserindo a mulher como intelectual, mesmo acumulando as funções domésticas.

Melhores Livros de Adélia Prado

Vale a pena esperar, contra toda a esperança, o cumprimento da Promessa que Deus fez a nossos pais no deserto. Até lá, o sol com chuva, o arco-íris, o esforço de amor, o maná em pequeninas rodelas, tornam boa a vida. A vida rui? A vida rola mas não cai. A vida é boa.

Com licença poética Quando nasci um anjo esbelto,desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher, esta espécie ainda envergonhada. Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir. Não sou tão feia que não possa casar, acho o Rio de Janeiro uma beleza e ora sim, ora não, creio em parto sem dor. Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos- dor não é amargura. Minha tristeza não tem pedigree,já a minha vontade da alegria, sua raiz vai ao meu mil avô. Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou. O que a memória ama, fica eterno. Te amo com a memória, imperecível. Casamento Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes. Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. É tão bom, só a gente sozinho na cozinha,de vez em quando os cotovelos se esbarram, ele fala coisas como este foi difícil, prateou no ar dando rabanadas e faz o gesto com a mão. O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo. Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir. Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva. O sonho encheu a noite Extravasou pro meu dia Encheu minha vida E é dele que eu vou viver Porque sonho não morre Dor não tem nada haver com amargura. Acho que tudo que acontece é feito pra gente aprender cada vez mais, é pra ensinar a gente a viver. Desdobrável. Cada dia mais rica de humanidade. As coisas tristíssimas,vão desaparecer quando soar a trombeta. Levantaremos como deuses, com a beleza das coisas que nunca pecaram, como árvores, como pedras, exatos e dignos de amor. Não quero faca, nem queijo. Quero a fome Eu te amo, homem, amo o teu coração, o que é, a carne de que é feito, amo sua matéria, fauna e flora, seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas perdidas nas casas que habitamos, os fios de tua barba. Esmero. Exausto Eu quero uma licença de dormir, perdão pra descansar horas a fio, sem ao menos sonhar a leve palha de um pequeno sonho. Quero o que antes da vida foi o sono profundo das espécies, a graça de um estado. Semente. Muito mais que raízes. Simplesmente amor Amor é a coisa mais alegre Amor é a coisa mais triste Amor é a coisa que mais quero Por causa dele falo palavras como lanças Amor é a coisa mais alegre Amor é a coisa mais triste Amor é a coisa que mais quero Por causa dele podem entalhar-me: Sou de pedra sabão. Alegre ou triste Amor é a coisa que mais quero. As línguas são imperfeitas pra que os poemas existam... Os diamantes são indestrutíveis? Mais é meu amor. O mar é imenso? Meu amor é maior, mais belo sem ornamentos do que um campo de flores. Mais triste do que a morte, mais desesperançado do que a onda batendo no rochedo, mais tenaz que o rochedo. Ama e nem sabe mais o que ama.

Quando dói, grito ai, quando é bom, fico bruta. As sensibilidades sem governo. Mas tenho meus prantos, claridades atrás do estômago humilde e fortíssima voz pra cânticos de festa.

Resumo Gerou os filhos, os netos, deu à casa o ar de sua graça e vai morrer de câncer. O modo como pousa a cabeça para um retrato é o da que, afinal, aceitou ser dispensável. Espera, sem uivos, a campa, a tampa, a inscrição: 1906-1970 SAUDADE DOS SEUS, LEONORA.

Se pudesse, hoje, varria, isso mesmo, varria as pessoas todas com vassoura, como se fossem ciscos.

Eu acho que Deus é uma projeção humana, é um desejo infinito que nós temos de adoração, e de algo que nos suspende com o sentido absoluto.

A gente tem sede de infinito e de permanência, então, esse ser que assegura a permanência das coisas, é que eu chamo de Deus. É o absoluto.

Eu quero depois, quando viver de novo, a ressurreição e a vida escamoteando o tempo dividido, eu quero o tempo inteiro.

Quero você na minha frente, extático, (...) e eu para todo o sempre olhando, olhando, olhando...

.Preciso mentir um pouco para que o ritmo aconteça e eu própria entenda o discurso.

Eu mesma não entendo minha enormíssima paciência de ficar à toa, só pensando, pensando e sentindo.

Um corpo quer outro corpo, uma alma quer outra alma e seu corpo. Este excesso de realidade me confunde.

Tudo que a memória amou já ficou eterno

Com perdão da palavra, quero cair na vida.

Me dão mingaus, caldos quentes, me dão prudentes conselhos, eu quero é a ponta sedosa do teu bigode atrevido, a tua boca de brasa.

Estou no começo do meu desespero, e só vejo dois caminhos: ou viro doida, ou santa.

Quero comer bolo de noiva, puro açúcar, puro amor carnal disfarçado de corações e sininhos: um branco, outro cor-de-rosa, um branco, outro cor-de-rosa.

Beleza não é luxo. É uma necessidade!

Dor não tem nada haver com amargura. Acho que tudo que acontece é feito pra gente aprender cada vez mais, é pra ensinar a gente a viver. Desdobrável. Cada dia mais rica de humanidade.

Meu Deus, me dê cinco anos. Me dá a mão, me cura de ser grande!

Sofro por causa do meu espírito de colecionador-arqueólogo. Quero pôr o bonito numa caixa com chave para abrir de vez em quando e olhar.

“Dor não tem nada a ver com amargura. / Acho que tudo que acontece / é feito pra gente aprender cada vez mais, / é pra ensinar a gente a viver. Desdobrável. / Cada dia mais rica de humanidade”

“...me consola, moço. Fala uma frase, feita com o meu nome, Para que ardam os crisântemos E eu tenha um feliz Natal!...”

Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra

(...)fiquei doida no encalço. Só melhoro quando chove.

Casamento Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes. Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram, ele fala coisas como “este foi difícil” “prateou no ar dando rabanadas” e faz o gesto com a mão. O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo. Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir. Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva.

O transe poético é o experimento de uma realidade anterior a você. Ela te observa e te ama. Isto é sagrado. É de Deus. É seu próprio olhar pondo nas coisas uma claridade inefável. Tentar dizê-la é o labor do poeta.

Um corpo quer outro corpo. Uma alma quer outra alma e seu corpo. Este excesso de realidade me confunde. Jonathan falando: parece que estou num filme. Se eu lhe dissesse você é estúpido ele diria sou mesmo. Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear eu iria. As casas baixas, as pessoas pobres, e o sol da tarde, imaginai o que era o sol da tarde sobre a nossa fragilidade. Vinha com Jonathan pela rua mais torta da cidade. O Caminho do Céu.

Eu quero uma licença de dormir, perdão pra descansar horas a fio, sem ao menos sonhar a leve palha de um pequeno sonho. Quero o que antes da vida foi o sono profundo das espécies, a graça de um estado. Semente. Muito mais que raízes. (Exausto)

A Serenata Uma noite de lua pálida e gerânios ele virá com a boca e mão incríveis tocar flauta no jardin. Estou no começo do meu dessespero e só vejo dois caminhos: ou viro doida ou santa. Eu que rejeito e exprobo o que não for natural como sangue e veias descubro que estou chorando todo dia, os cabelos entristecidos, a pele assaltada de indecisão. Quando ele vier, porque é certo que vem, de que modo vou chegar ao balcão sem juventude? A lua, os gerânios e ele serão os mesmos - só a mulher entre as coisas envelhece. De que modo vou abrir a janela,se não for doida? Como a fecharei, se não for santa?